sexta-feira, 20 de agosto de 2021

A LINGUAGEM NEUTRA NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

 A Constituição Federal brasileira de 1988 diz, em seu artigo 13, que "A língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil".

Merece atenção o fato do mencionado dispositivo constitucional acima transcrito afirmar textualmente que a língua portuguesa é o idioma OFICIAL, de modo que esse verbete em destaque, no contexto em que se encontra, acena para a obrigatoriedade dos documentos e áudios da lavra do Poder Público serem escritos e falados não somente na língua portuguesa, mas também dentro dos padrões oficiais, pois, do contrário, qual o sentido do verbete OFICIAL no comando constitucional? Aliás, ele é esclarecedor e distintivo, visto que a supressão do mesmo na frase abriria a brecha para que gírias e regionalismos linguísticos pudessem ser usados pelo Poder Público em suas expressões oficiais, cabendo, aqui, a observação de que aos índios está reservada a utilização de suas línguas maternas e dos processos próprios de aprendizagem por ocasião da ministração do ensino fundamental regular em língua portuguesa, conforme está disposto no Art. 210, § 2º, da Constituição Federal de 1988. Portanto, diferentemente de alguns países, como a Bolívia e o Equador, o Brasil não adotou as línguas indígenas como integrantes da oficial.

Que padrões oficiais são esses? São os padrões gramaticais em vigor, como, por exemplo, aqueles ligados à ortografia, à acentuação gráfica, à regência, à concordância, etc. Nesse sentido, é de fácil observação que todos os entes federados e todos os três Poderes constituídos determinam essa obrigatoriedade na produção de textos oficiais, sendo que muitos desses órgãos dispõem, inclusive, de manuais de redação oficial para orientação de seus servidores.

Em que pese o fato da língua ser um elemento vivo (com capacidade de mutação), a incorporação de neologismos por parte do Poder Público não ocorre de forma anárquica, mas a partir de critérios legais, vale dizer, quem determina a escrita oficial não são movimentos sociais, grupos ativistas, etc., e sim o próprio Estado, por meio de determinação legal, o que significa dizer que a existência, por si só, de novos verbetes em dicionários não é por si só suficiente para uso desses neologismos de forma anárquica pela Administração Pública, salvo sua menção de forma destacada (em itálico, aspeados ou maiusculizados) quando a eles se quer fazer menção (Exemplo hipotético: José defende que todes integre a língua oficial). 

Desse modo, o pretenso "pronome" TODES, para citar um exemplo, não pode ser usado pelo Poder Público em seus escritos, seja por meio de papéis, seja nas páginas oficiais da internet, seja nos audiovisuais, a menos que esse verbete ingresse na ortografia de nossa língua pelo crivo legal, como ocorreu com as novas regras decorrentes do novo acordo ortográfico da língua portuguesa, as quais, para vigorarem no Brasil, houve a necessidade de atos normativos do governo federal tornando-as oficiais (as novas regras), o que efetivamente aconteceu.

Os defensores da linguagem neutra têm o direito de pleitear esses neologismos e de usar suas redes sociais (por exemplo) com esses neologismos, porém essa militância, ainda que numericamente expressiva no meio social, não autoriza o Poder Público a usar da liberdade de agir à margem da língua oficial, ainda que a título de atender a expressivo apelo inclusivo e/ou pró-diversidade, pois o Poder Público está vinculado à obrigatoriedade do uso da linguagem oficial em face de uma exigência constitucional. Desse modo, o raciocínio consectário é no sentido de que até os ativistas desses neologismos estão vinculados ao dever de obediência às regras oficiais da língua portuguesa toda vez que (i) representarem o Poder Público, (ii) submeterem-se a exames oficiais promovidos por esse mesmo Poder ou (iii) quando se dirigirem oficialmente ao Poder Público, seja na forma escrita ou falada.

Ademais, cabe destacar outro ponto bem relevante: o supracitado artigo da Constituição Federal não permite a fragmentação do idioma entre os entes federados. Vale dizer, enquanto a linguagem neutra não integrar a ortografia oficial de nosso idioma, não pode um município ou um estado federado, por exemplo, adotar oficialmente essa linguagem, mesmo que por meio de aprovação de lei municipal ou estadual, pois, embora o conteúdo do citado artigo 13 não esteja dentro das disposições expressas do Título III da Constituição Federal (título esse reservado à organização político-administrativo da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal), o teor e o espírito do mencionado artigo não deixam dúvidas quanto à unidade e à inseparabilidade da língua portuguesa como idioma oficial a ser formalmente usado em todo o território nacional. As regras oficiais valem para todos os entes, indistintamente, sendo da União a competência para alterar a nossa língua oficial. 

Por fim, somente observar que esta publicação não tem o propósito de discutir os aspectos etimológicos ligados à linguagem neutra, tampouco se o Brasil deve ou não incluir a linguagem neutra nas regras gramaticais canônicas, bem assim se a referida linguagem é ou não constitucional, cujos temas serão tratados separadamente.                                                                                                              

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Texto atualizado em 09.01.2022

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

O DIREITO PENAL NAZISTA

Adolf Hitler foi o autor intelectual de uma proposta para a criação de um denso código penal alemão, tendo como fundamentação a premissa de que o direito penal deveria ser instrumento de combate ao inimigo, por ele chamado de "perturbador da paz". Esse projeto não se transformou em lei, mas a vontade nele projetada se materializou em boa parte no direito prático de seu tempo.

Ao assumir o comando político da Alemanha, Hitler tinha pelo menos 4 (quatro) objetivos bem claros, dentre os quais expandir o território alemão e purificar a raça ariana, banindo os judeus.

O estopim para a ação de Hitler na seara penal foi o incêndio do Reichstag, ocorrido em 27 de fevereiro de 1933, o que resultou num decreto editado no dia seguinte, fundamentado na premissa de que o mesmo visava a proteção do povo e do Estado. O referido decreto terminou por afastar vários direitos fundamentais, criando, por exemplo, a previsão de pena de morte para casos de incêndio e alta traição, mesmo sem previsão legal no código penal então em vigor. Outra medida do decreto foi a centralização do poder político nas mãos do ditador em questão.

Como o decreto mencionado ocorreu em data posterior ao crime atribuído, Hitler queria que o mesmo tivesse aplicabilidade retroativa, pois seu objetivo era punir com morte os réus a quem se lhes atribuía a responsabilidade pelo incêndio. Para tanto, Hitler reuniu seu ministério e exigiu o cumprimento retroativo de seu decreto, quando anunciou que iria pessoalmente à cúpula do tribunal alemão a fim de alcançar seu objetivo. E conseguiu: meses depois fez aprovar uma lei que reconhecesse essa retroatividade. No julgamento, os réus não tiveram sequer o direito de escolher seus advogados, sendo-lhes nomeados por indicação do próprio Hitler, os quais não obtiveram nenhum pedido alcançado, sendo todos eles negados pelo juiz que presidiu a ação, também escolhido pelo ditador. Um dos réus, exatamente o que Hitler queria que fosse punido com pena de morte, teve seu destino selado como tal.

Também fez aprovar leis que lhe davam poderes para editar decretos sem limitações temáticas, inclusive para firmar tratados internacionais sem a intervenção do legislativo.

Hitler passa então a perseguir professores universitários de Direito, sendo um deles o conhecido jurista Hans Kelsen, que teve que se refugiar nos Estados Unidos.

São realizados congressos jurídicos com temáticas ligadas aos judeus, cujo propósito passava pela necessidade de eliminar a influência judaica do mundo jurídico. Não demorou e a eugenia, com foro de ciência, foi encaixada em temas jurídicos e científicos. Ainda naquele ano de 1933, Hitler conseguiu editar um decreto que previa a esterilização de pessoas com doenças hereditárias. O casamento e relações sexuais entre alemães e judeus passaram a ser criminalizadas, num manifesto intento eugenista da lei, que considerava como científica a superioridade racial alemã. Também foi proibido o aborto por casais arianos, porém estimulado quando os pais apresentavam alguma doença hereditária.

Dois anos depois, tendo o Poder Legislativo sob seu controle, o ditador alemão conseguiu a aprovação de uma lei que previa a analogia em sede penal com base no sentimento do povo alemão, cuja premissa partia do pressuposto de que era preciso libertar o juiz das prisões do texto da lei, tendo o jurista Carl Schmitt - adversário de Hans Kelsen - como mentor jurídico intelectual dessa proposta. Na prática, tendo em vista que o Poder Judiciário estava sob o controle político do líder alemão, consistia essa medida em permitir que o juiz pudesse ir além do texto da lei, a fim de alcançar os propósitos políticos do ditador. Desde então foram promulgadas várias leis penais que traziam muitos termos abertos e vagos, por meio dos quais, como dito, o juiz poderia enquadrar determinada prática como sendo delituosa, ainda que ela não se enquadrasse no texto da lei.

De um modo geral, o corpo jurídico nazista passou a ser interpretado pelos tribunais considerando o ser humano alemão como uma comunidade com valores próprios (distintos dos demais povos), e não como uma individualidade portadora de direitos fundamentais. Nesse sentido, a lei penal passou a ser usada como uma caça aos inimigos do governo e do arianismo, sendo considerado inimigo todo aquele que fosse concreto ou potencialmente perigoso para o sentimento comunitário do povo alemão.

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Parte do conteúdo deste texto tem como fonte o trabalho acadêmico do Prof. Dr. Chistiano Fragoso. Texto e autoria de Robério Fernandes, autor deste blog.